O Sonho
Desde menina, sempre sonhei em conhecer a Grécia. Encantavam-me as fábulas
de Esopo, que minha mãe lia para mim na cama e,
na escola, a matéria de que eu mais gostava era História Antiga, com destaque para Esparta e Atenas. Na adolescência, optei pelo antigo Curso Clássico para fugir da
matemática e estudar filosofia. Sócrates, Parmênides, Aristóteles, Platão apresentavam-me
um universo de questões e teorias que me faziam me sentir especial em relação aos
pobres mortais, que nem suspeitavam o que era o devir. Alimentei o sonho de conhecer Atenas por muitos anos, mas só fui realizá-lo em 2006, na companhia de três das minhas amigas mais
queridas, Maraíza, Zenaide e Leni.
Chegamos à noite, e nos hospedamos num
hotelzinho em Plaka, um dos bairros mais animados de Atenas. Deixamos as malas nos
quartos e logo saímos para passear pelos arredores e para jantar. Aquele era meu primeiro dia
de férias, depois de uma temporada muito pesada de trabalho, e eu estava absolutamente
exausta pela viagem. A comida não me caiu bem, mas eu não liguei.
No dia seguinte, sob um sol escaldante, lá fomos nós para a Acrópole. Quem já esteve lá sabe que a subida é bastante penosa e escorregadia, mas eu, morrendo de sede e queimando ao sol, só pensava em chegar ao Partenon, lá no alto da Colina.
Queria que minha chegada aos
monumentos sagrados fosse reverencial, quase triunfante, mas não deu para ser assim. Eu
não me sentia nada bem, o calor era insuportável, não havia um único lugar onde eu
pudesse conseguir um pouco de água para beber e havia turistas de todos os lugares do
mundo para todos os lados.
Mesmo assim, eu tentava me concentrar, sentir a força daquelas edificações que atravessaram tantos séculos, imaginar Aristóteles caminhando por ali com seus discípulos.
Do alto do Partenon, a vista que se tem de Atenas é deslumbrante, mas minha visão se embaralhava e sequer consegui aproveitar a visita ao Museu da Acrópole.
Eu sentia uma fadiga extrema e a volta me pareceu ainda mais difícil do que a subida. Minhas amigas estavam felizes e animadas e eu não entendia porque eu estava tão sem energia.
Castigo dos deuses? Naquela mesma noite, os vômitos
começaram em jatos violentos. Isso foi só o começo. Depois, passaram a vir acompanhados de forte desarranjo intestinal, o que me levou a ficar
completamente desidratada. Ainda de madrugada, fui levada por minhas amigas para o
hospital indicado pelo gerente do hotel, onde passei por uma das piores experiências de minha vida.
O Pesadelo
O Helenik Democratia, era um hospital público, antigo e superlotado, onde todo
o corpo médico, enfermeiros, atendentes e pacientes falavam alto como se estivessem
brigando o tempo todo, e se movimentavam de lá para cá, de forma rude e estranha.
Apenas um médico falava inglês e uma de minhas amigas, a Maraíza, conseguiu explicar a
ele a minha situação.
Encaminharam-me, então, para um ambulatório lamentável, sujo,
numa maca ensebada e sem forro. Eu estava passando muito mal e uma enfermeira sem a menor
higiene e paciência espetou-me, com grosseria, uma agulha para me colocar soro, falando
alto e rispidamente sem parar.
O médico havia pedido também um exame de sangue, um
eletrocardiograma e uma ultrassonografia do abdômen e como eu estava muito fraca e não
conseguia manter-me em pé, fui colocada numa cadeira de rodas e conduzida para uma
outra ala do hospital, de um jeito tão veloz que parecia que eu estava participando de uma
corrida.
Minha barriga doía a cada chacoalhada e minhas amigas tiveram de correr muito
atrás do enfermeiro que me conduzia para não me perderem de vista. Quando o enfermeiro chegou
a essa outra ala distante, simplesmente largou- me ali, sem nada explicar. Também nem
adiantaria, nenhuma de nós falava grego.
Ficamos ali esperando por muito tempo e eu comecei
a piorar. Fui perdendo a cor e desfaleci por completo. Minhas amigas começaram a gritar e
só, então, os enfermeiros tomaram uma atitude e me colocaram deitada naquele chão
imundo. Um médico foi chamado às pressas, fez algumas manobras para eu recobrar os sentidos e, depois de fazer todos os exames de imagem necessários, resolveu me internar.
Deita, que tem mais pesadelo
Maraíza foi cuidar da internação, cheia de burocracia e brutalidades no trato.
Quando ela voltou com a papelada, colocaram-me numa maca e uma nova corrida teve
início em direção a outra ala do hospital onde eu seria internada.
O enfermeiro corria tanto
com a maca, que a Zenaide e a Maraíza não conseguiram segui-lo. Somente a Leni conseguiu entrar no elevador, antes que a porta se fechasse. Quando descemos no quarto
andar, porém, ela foi impedida de seguir a meu lado.
Largaram-me bem no meio de uma
enfermaria cheia de velhinhas muito doentes. Algumas gemiam muito, outras repetiam,
sem parar, uma espécie de mantra grego, como se fosse um lamento.
Eu continuava na
mesma maca sem revestimento, sem lençol para me cobrir, sem minhas amigas,
rodeada de moribundas estranhas, que não falavam a minha língua e à mercê de
enfermeiras rudes, sem a mínima noção de higiene e de polidez.
De vez em
quando mexiam em mim bruscamente, perguntando alto coisas que eu não entendia. Eu estava péssima. A perspectiva de passar a noite ali me apavorava. Talvez morresse ali
sozinha.
Era o auge do pesadelo.
Para completar, uma enfermeira entra com um carrinho
de refeições e deixa uma bandeja com um prato de macarrão branco e um pedaço de
frango engordurado em cima de minha barriga dolorida.
Eu mal podia me mexer com aquilo
pesando em cima de mim e gritei em inglês que não podia comer nada daquilo.
A mulher
não entendia e gritava mais alto do que eu, em grego. Eu comecei a fazer gestos para ela
levar a bandeja e ela foi ficando cada vez mais brava. Por fim, retirou a bandeja e eu vi que
minha amiga Leni estava ali a meu lado. Ela tinha conseguido entrar às escondidas.
Também estava horrorizada com aquele lugar e imediatamente começamos a pensar num
jeito de fugir dali.
Maraíza e Zenaide durante todo esse tempo estavam tentando nos localizar. O Hospital era
imenso e elas começaram a ser perseguidas pelos seguranças. Chegaram a ser expulsas de alguns lugares, mas insistiram na busca até nos encontrarem.
Agora eram três a pensar num jeito de me tirar dali.
Enquanto isso, eu cochilava de fraqueza na maca.
Chegavam perguntando tudo em grego, levantavam meu vestido até
o pescoço sem a menor cerimônia, e, quando falavam alguma coisa em inglês, faziam de novo todas as
perguntas que o médico que me internara já fizera.
Como sou alérgica a uma série de
medicamentos, minha amiga mostrava-lhes a lista dos medicamentos proibidos e eles
faziam cara de surpresa.
Ninguém parecia saber o que fazer comigo. Uma desorganização
absoluta, coisa de doido!
Minhas amigas disseram a um dos médicos que se
responsabilizavam por minha saúde. Perguntaram se eu poderia ir, quando o
frasco de soro que eu estava tomando acabasse.
Ele não quis se comprometer. Não respondeu
nada, mas a enfermeira retirou o acesso do meu braço quando o soro acabou e não
colocou outro.
Entendemos que aquele era o sinal.
A Fuga
Assim que a enfermeira saiu,
minhas amigas me ajudaram a levantar da maca e a calçar meus sapatos.
Fui apoiada por
elas até um imenso corredor, onde me esperava uma cadeira de rodas quebrada e
enferrujada, que elas encontraram num canto.
Não foi fácil sair dali.
Tivemos de percorrer
um longo caminho, denunciadas pelo nada discreto nhec nhec da roda quebrada da minha
cadeira, que elas empurravam como podiam.
Saímos pelos fundos do hospital e quando,
enfim, alcançamos a rua, mais uma dificuldade.
Não conseguíamos pegar nenhum táxi
para nos levar de volta ao hotel. É que, em Atenas, os táxis só aceitam passageiros que
vão para a sua própria rota, e, ao pará-los, os taxistas recitam em grego essa rota, já que a
maior parte deles não fala inglês.
Assim, levamos mais de uma hora para conseguir quem
nos levasse. Cheguei ao hotel muito fraca, completamente debilitada, mas feliz por ter
sobrevivido a essa aventura grega.
Em seguida, chamamos um médico particular, que me
prescreveu repouso, dieta e antibióticos, o que sabotou grandemente minha tão sonhada
viagem a Atenas.
Hoje percebo que minha visita a Atenas foi uma verdadeira Odisséia. Quiseram os deuses que eu fosse testada para depois obter a recompensa?
Não. Não foi o dom da imortalidade que recebi depois do que passei em Atenas, mas a sorte de ter amigas verdadeiras, que tudo fizeram para cuidar de mim, e a de poder, ainda, aproveitar a viagem, conhecendo outros lugares maravilhosos da Grécia, como
Delphos, Mykonos, Santorini e Creta.
Foi incrível! Mas isso fica para uma outra vez.
Efigaristó para sempre, meninas!